Existem certos tipos de conteúdo que inevitavelmente serão associados à crianças e, consequentemente, taxados como infantis. Um bom exemplo disso é o caso das animações: mesmo que existam inúmeras animações um pouco mais complexas que têm como público-alvo adolescentes e/ou adultos, dificilmente vamos tirar essa ideia do senso comum de que “desenho é coisa de criança”. Não importa quantos Simpsons, Futuramas ou BoJacks existam, sempre vai pairar aquele singelo consenso popular de que toda animação é destinada unicamente para crianças (e só crianças deveriam consumir esse tipo de conteúdo).
Eu sei que esse é um pensamento bastante idiota e superficial, tanto é que na maioria das vezes ele passa despercebido pela multidão e é tomado como normal/inofensivo. Pense um pouco sobre quantas pessoas você já presenciou pessoal ou virtualmente em situações de constrangimento unicamente por gostarem de coisas ditas infantis (animes, tokusatsu, quadrinhos, livros etc). É bastante comum ver algumas pessoas pseudo-cultas menosprezando os gostos dos outros, aliás isso rola quase que diariamente no Twitter – talvez o maior antro desse tipo de comportamento.
O problema desse comportamento nocivo de “idade limite” não é necessariamente taxar algo como infantil ou não, mas sim tentar diminuir o consumidor que não está enquadrado como público-alvo da obra. Se você tem seus 20 e poucos anos, é bem óbvio que já consegue – ou deveria conseguir – ler livros “complexos” de português arcaico e com seu peso para a literatura nacional, mas qual é o problema em optar por Harry Potter ou quadrinhos de heróis? Uma imposição de consumo x idade num país que não incentiva a cultura e a própria educação acaba por ser não só chatice e encheção de saco, mas sim um comportamento bastante problemático.
Para crianças e adolescentes…
Uma obra infantil é toda produção artística que tem como público-alvo crianças. Normalmente filmes e livros nessa pegada têm traços formulares (muito redondo ou quadrado), cores vibrantes, poucas palavras escritas e uma trama curta e objetiva – e as vezes didática. O objetivo desse tipo de conteúdo é entreter, ensinar e preparar crianças para o consumo de obras um pouco mais “complexas”, as infanto-juvenis e juvenis.
Nas obras juvenis (para adolescentes), temos enredos um pouco mais detalhados e intrigantes, não sendo aquela coisa crua e fácil de antes. Nem tudo é tão colorido, as personagens têm um desenvolvimento amplo e bem similar ao dos jovens, as obras abordam temas controversos da adolescência – esses podem ou não ser o foco da narrativa – e geralmente fomentam debates acerca disso.
Por serem precisos em termos público-alvo, esses conjuntos teoricamente não deveriam ser do interesse de pessoas fora da faixa etária estabelecida, ou seja, provavelmente adultos não tendem a ler livro juvenis ou assistir animações infantis. Graças à essa concepção, é tomada a noção de que somente crianças e jovens consomem isso, portanto toda a produção deve ser focada neles, inclusive a de brinquedos, roupas e acessórios – e não tem problema algum nisso, afinal é uma questão da indústria (envolve gastos, cálculos e pesquisas de interesse da responsabilidade dos mesmos).
A exceção da regra
Existem obras que são feitas para crianças, mas também existem as que são entendidas como feitas para crianças, ainda que não sejam de fato um conteúdo infantil – como é o caso de alguns animes ou mangás com gore e violência (Kimetsu no Yaiba é um bom exemplo). Os dois estilos não têm a complexidade de livros ou filmes cult – aqueles com forte apelo à filosofia e coisas ditas eruditas -, mas ainda sim possuem um inacreditável número de adultos em suas respectivas fanbases.
Eu conheço bastante gente crescida que é fã e acompanha assiduamente animações e quadrinhos ditos para jovens e crianças. Na maior parte das vezes elas usam o entretenimento como forma de “escape da realidade”, ou seja, demandam de conteúdo que os distraia de sua rotina exaustiva, então algo mais adulto e erudito seria bastante chato e cansativo. Jogos de video game, hqs de heróis e animes são a forma de entretenimento perfeito para aliviar tais pessoas – são relativamente fáceis, curtos e interessantes.
Há quem goste de consumir esse tipo de coisa por mera nostalgia, como é o caso do tokusatsu no ocidente: muita gente assiste Kamen Rider e Super Sentai graças aos clássicos exibidos na saudosa TV Manchete. Isso também acontece com Pokémon, Digimon, Yu-Gi-Oh! e tantos outros que só amamos hoje porque nos foram apresentados bem antes.
Até aqui eu só falei sobre obras infantis com fãs crescidos, mas não posso deixar de citar os casos em que jovens consomem conteúdo com temáticas sérias e abordagens bastante complexas – eu mesma gosto muito de livros sobre a Segunda Guerra e aqueles que tratam de linguagens de programação. Esse, tanto quanto otakus de 30 anos, é um belo exemplo de quebra de expectativa de quem deveria ou não consumir aquele tipo de tema.
As vezes não é por opção e preferência
Segundo uma pesquisa domiciliar realizada em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil existem cerca de 11,3 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais – o que é praticamente 7% da população. Vale ressaltar que a pesquisa em si não considera semianalfabetos, ou seja, ela não conta os que têm um nível parcial de alfabetização – mas a estimativa do Índice Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf) aponta mais de 30% da população.
A nível de comparação, vou te mostrar o quão grande e preocupante esse número é:
- A cidade de São Paulo é a mais populosa do Brasil, tendo cerca de 12 milhões de habitantes. Se juntássemos todos os analfabetos – não semianalfabetos – eles ocupariam praticamente a cidade inteira.
- O Maracanã é atualmente o maior estádio do Brasil. A capacidade de lotação dele é de cerca de 78 mil pessoas, então seriam necessários 145 Maracanãs para comportar todos os analfabetos do Brasil.
- Harry Potter e a Pedra Filosofal foi o livro mais vendido de uma das series literárias mais famosas do mundo, com cerca de 120 milhões de cópias. Se dividíssemos esses exemplares entre os analfabetos do Brasil, cada um deles teria aproximadamente 10~11 desses livros.
Deu pra entender, né? Nem todo mundo tem capacidade de consumir o que você acha justo.
Pode ou não pode?
O meu ponto é o seguinte: não importa o quão infantil ou adulta uma obra seja, sempre terá algum fã que não se enquadra no seu público-alvo pré-determinado. E não, não tem problema nenhum nisso, esse lance é completamente normal e inofensivo, várias pessoas consomem conteúdo dessa forma e querendo ou não movimentam a indústria e ficam felizes assim.
Quando fui para a CCXP19, vi um cara bem especial no auditório. Ele tinha seus 40 anos e estava com algumas hqs do Batman, aparentemente bastante ansioso pro painel dos 80 anos do Homem-Morcego que ia rolar nas próximas horas. Acho que se a gente considerar tudo, ele não é exatamente o público-alvo do evento e da hq: o cara é um pai de família com problemas e responsabilidades, definitivamente não o tipo de gente que teoricamente deveria ler uma hq de herói. Mas ainda sim ele estava feliz, lendo sua hq e esperando pelo painel com os principais cartunistas do Batman… e eu não vejo problema nenhum nisso.
É bastante egoísta tentar privar as pessoas de consumirem o que elas gostam e as fazem bem, além de ser no mínimo de mau gosto zombar de alguém por esse ser fã de algo – e isso não especificamente no caso da idade x consumo, mas sim em qualquer julgamento de gostos alheios. Você pode até não gostar de música coreana, animações japonesas, filmes de herói ou livros do Percy Jackson, mas tem gente que gosta. Não tem nenhum problema em ser fã de algo, entende? É só respeitar os gostos alheios e exercer o seu próprio.
A gente vive em um mundo que não é só seu e meu, mas sim de todos. Sempre vai existir alguém para gostar de algo que a gente considera ruim, e é isso aí, gostos são variáveis e pessoais, não uma coisa absoluta que todos devem seguir da mesma forma. É sempre bom lembrar que você não é a pessoa mais inteligente do mundo, muito menos superior ou inferior à alguém, portanto sua palavra não vale mais ou menos.
Lembre de respeitar o gosto do amiguinho e exercer o seu dentro dos limites, beleza? Deixa os velhos curtirem anime, os novos lerem o que preferirem e todo o resto se organizar como quiser. É isso aí, vida que segue, cada um na sua.
Obrigada por ler!
Bom consumo para você, seja lá o que gostar de consumir!
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