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Mesmo sendo uma entusiasta do assunto “viagem no tempo”, confesso que entrei tarde, bem tarde, na onda de Dark. Na verdade eu só me empolguei mesmo quando soube que a terceira temporada, liberada no fim de junho pela Netflix, era a última da série. Vamos maratonar! De cara eu curti a estética. Talvez tenha sido a semelhança estética com Les Revenants, que também tem uma floresta onipresente e seus muitos e sufocantes tons de cinza (ainda que o verde seja intenso) que – assim como em Widen – transpassa da fotografia para o humor dos habitantes da cidade. E minha memória afetiva não me engana: assim como na série francesa, o mistério gira em torno de uma grande instalação de geração de energia na cidade: lá era uma hidrelétrica e cá, em Dark, temos uma usina nuclear.

Uma coisa é certa, tem que ter a cabeça bem boa e atenta para absorver as toneladas de informações sobre os personagens, suas linhagens familiares e – obviamente – suas linhas do tempo. A série se concentra em períodos específicos no tempo: intervalos de 33 anos a partir de 2019 (tempo presente da primeira temporada que foi ao ar em 2017). Ou seja, de lá viajamos para 1986 e 1953. Na segunda temporada, como o ano da narrativa já é 2020, as viagens se deslocam para 1987, 1954, chegando aos anos 20 e visitando ocasionalmente o futuro, sempre respeitando a regra dos 33 anos. É o número mítico, cabalístico da série. Poderia ser 7, 12, mas escolheram 33 e o justificam dentro desse universo.

Minha Viagem, Minhas Regras

Também é importante entender que, em Dark, o conceito de tempo está bem próximo da icônica explicação do 10o Doctor Who: “a big ball of wibbly wobbly, timey wimey stuff”. No caso, “tudo está conectado”, como indica uma das poucas explicações em voice-over que o drama se dispõe a nos fazer. Ou seja, não é um continuum, mas algo organicamente cíclico, como se passado, presente e futuro acontecessem ao mesmo tempo e, no caso, em looping. Assim, o futuro pode sim interferir no passado fazendo com que coisas existam sem necessariamente terem sido criadas: o paradoxo de Bootstrap. Convenhamos que um dos grandes méritos de Dark é que ela se atém às regras que se propõe para as famigeradas e complicadas viagens no tempo. Não importa quais são: se você vai criar regras, agarre-se a elas. E por isso, em Dark, tudo funciona.

Não é algo confortável de assistir, ou de entender. É preciso lutar contra várias premissas (aqui você pode encontrar e interagir com seu outro “eu” sem perigo de explodir o universo) e o nó na cabeça, meus amigos, cedo ou tarde ele te pega. Isso foi algo que me incomodou bastante. Tudo bem assistirmos algo instigante ou desafiador, mas precisar fazer anotações paralelas para não perder o fio da meada é um pouco demais para mim. Você pisca um segundo e perde algo que quebra totalmente o sentido das coisas. Afinal, tudo em Dark tem uma lógica própria que não funciona fora dali e isso mata a nossa intuição. Dark é um mistério que nos provoca a desvendá-lo mas, ao mesmo tempo, joga em nossa cara que somos apenas espectadores. Não há muito o que fazer ou intuir, apenas assistir e absorver as toneladas de informações novas e desconexas.

Difícil de assistir, mas mais difícil é abandonar

Mas dou minha mão à palmatória. Reconheço que, depois que a gente engrena, é difícil de parar. Se é difícil de assistir, é mais difícil ainda abandonar. Chega um ponto em que é vital descobrir como vão desatar tantos nós! Todo o caos que transparece neste texto flui, acreditem, à sua maneira, em uma narrativa intrincada e poderosa. Claro que isso tem um preço: o roteiro não se preocupa muito em desenvolver ou aprofundar os personagens. Eles são irritantemente autocentrados e estão sempre ocupados demais, cada um tentando resolver o mistério à sua maneira. Neste contexto, são apenas peças aleatórias de um enorme e intrincado quebra-cabeças e nem se esforce para exercer alguma empatia. Não rola. Como bom blockbuster juvenil, os adultos obviamente escondem tudo ou não sacam nada e o adolescente, sempre ele, é obrigado a agir (The OA, é você?).

E, a despeito dos fartos cliffhangers que nos mantêm firmes e fortes na maratona, apenas no quarto episódio da segunda temporada eu soltei um honesto EITA PORRA. Quando você acha que pegou a manha do buraco de minhoca e se atreve a fazer previsões, a trama chega com realidades paralelas. Você já estava habituado às dicas da edição para se situar no tempo e percebe que tem novas dicas para se situar entre as realidades. Melhor ainda, percebe que precisa prestar atenção na disposição dos detalhes na tela, incluindo a simetria dos cenários e traços físicos dos personagens e até na proporção da tela (o “ratio screen” mesmo) para entender. Confesso que achei o representação do mundo “revertido” (Stranger Things, hellooo!) uma sacada de mestre e deveras fascinante. O roteiro é o ponto alto, caprichosamente elaborado para linkar os dois mundos – e sua constância – de forma simples e brilhante.

Duvide de todos, até de si mesmo

Mas mal temos tempo de apreciar porque na terceira temporada (ele, o número “3” sozinho, também é importante) percebemos que a guerra do bem contra o mal acontece no multiverso e com todas as versões temporais possíveis de cada personagem chave atuando desconexamente. Deixou de ser sobre paradigmas e paradoxos e passou a ser sobre quem mente mais e melhor para o coleguinha ou para (uma outra versão de) si mesmo. Se em Game of Thrones o lema era “não se apegue a ninguém”, aqui a parada é “duvide de todo mundo, até de si mesmo”. Ou não, pois que podem estar falando a verdade só pra te fazer duvidar e provocar o efeito inverso. Sim, cansativo.

No fim os humilhados serão exaltados e a resiliência vale a pena. Dark tem um final elegante, fiel à sua própria doutrina (claro!) e que compensa todas as suas falhas (mesmo deixando uma ou outra questão menor em aberto). Os embates filosóficos se aprofundam e a viagem do tempo se revela uma metáfora religiosa sobre o poder, o destino e o livre-arbítrio. Compreendemos que o “Dark”, do título, ganha vários outros significados para além da óbvia escuridão das cavernas de Widen, passando inclusive pela quase mítica matéria escura que é manipulada com sucesso por alguns dos viajantes. No fim, Dark é uma ode kafkaesca à incurável mania humana de lamentar e se apegar aos seus caminhos não percorridos.

Drops *COM SPOILERS* (afinal eu também sou gente preciso desabafar!)

  • Honestamente a maratona da série, ainda que tardia, foi para mim foi a melhor coisa, pois se eu tivesse acompanhado os gaps anuais naturais entre as temporadas, esqueceria dos detalhes e dificilmente voltaria a acompanhar.
  • A série é tão complexa que a própria Netflix lançou um site de referência para quem se perdesse no caminho: https://dark.netflix.io/en. Para quem não fala inglês, a youtuber Carol Moreira acabou virando uma espécie de oráculo da série e montou uma playlist em seu canal que ajuda os incautos a entenderem melhor as linhas do tempo.
  • O nome do relojoeiro, gente: Heinrich Gustav Tannhaus. HG para HG Wells e sua Time Machine somado ao Tanhauser Gate de Blade Runner!!! Adorei!
  • A 3ª temporada estreou em 27 de junho de 2020: justamente a data do “fim do mundo” na série.
  • A fotografia de Nikolaus Summerer tem uma assinatura própria: tem sempre um objeto ou um tom de amarelo em toda e cada tomada.
  • A data “12 de novembro” também é uma data chave em De Volta para o Futuro (1985). Aparentemente, quando mexemos com viagens no tempo, vamos acabar provocando algo importante em algum 12 de novembro!
  • A “Tábua de Esmeralda” é um texto ao qual se é atribuída a origem da Alquimia, aquele movimento fantástico que busca nada mais, nada menos que a vida eterna.
  • O Fio de Ariadne aparecendo dentro e fora do palco da escola: a peça estrelada pela Martha e os labirintos das cavernas.
  • O “Demônio Branco” é uma sagaz referência à Lilith, a demônia mais antiga da história, que enganou Eva no Éden.
  • Quem lembrou de Interestelar na cena dos corredores no último episódio, levanta a mão!
  • O nome Claudia vem do alemão para “rainha da p*rra toda”! <3

Perguntas ao meu ver não respondidas

  • Faltou um tantinho de cuidado para explicar como a Claudia descobriu o mundo-origem, né? Mas como eu disse lá em cima: assista e absorva…
  • O que eram as visões da Martha (vendo ela mesma) e do Jonas (vendo o pai) ambos na floresta, cada um em sua realidade, com Martha e Mikkel cobertos de óleo (ou coisa parecida)?
  • Por que a Agnes precisou sumir e abondonar o Tronte, gente?
  • O que o irmão do Clausen (e a carta que ele recebeu o levando para Widden) tinha a ver com o resto da trama?
  • Qual era da moedinha nos cordões dos meninos assassinados na “cadeira”?

Comentem aqui ou me chamem no @claudiasimas para falarmos sobre essas questões! Vou adorar!