Mexer com clássicos da cultura pop ou ícones ligados à memória afetiva de toda uma geração requer um tanto de ousadia. E sempre será um tiro no escuro. O que fazer com uma fórmula vigente há mais de 50 anos, mantê-la ou atualizá-la? A segunda opção deve ser um risco calculado que precisa ser corrido para se captar toda uma nova geração de pequenos fãs. Já a primeira é um alento destinado exclusivamente aos mais velhos. Os mesmos que, uma vez crescidos, podem sequer ligar se Scooby-Doo está mais ou menos falante.
Essa lógica parece justificar a escolha feita pela Warner para SCOOBY! O Filme, de não ser nem uma coisa nem outra. A obra – que se vende como uma “reinvenção” – mostra as origens da amizade entre Salsicha e Scooby e o encontro dos dois com o restante da turma – Fred, Daphne e Velma. De cara, o quinteto resolve seu primeiro mistério, com direito a todos os clichês do original: jogo de engrenagens e luzes para simular o sobrenatural, máscara de borracha e a icônica frase “nada disso teria acontecido se não fossem essas crianças intrometidas”.
A sequência mostra um recorte de cenas que supõe que todos entenderam que essa mecânica se repetiria por anos, atravessando a adolescência da turma e chegando ao ponto onde eles precisam decidir se devem ou não se profissionalizar. Neste momento acaba o prólogo fofo e começa a “reinvenção”. O quinteto se insere sem traumas no século XX, com celulares, redes sociais e Harry Potter, e se vê envolvido numa aventura que vai muito além dos picaretas da vizinhança. Trata-se de uma ameaça global.
Haja memória afetiva para compensar um roteiro confuso
Nas vozes estão nomes como Mark Wahlberg (em sua primeira aventura na dublagem), Jason Isaacs, Gina Rodriguez, Zac Efron, Amanda Seyfried, Tracy Morgan e Simon Cowell. A direção de arte foi bastante respeitosa no tocante aos traços e aspectos dos personagens originais e até se deu ao luxo de criar “assinaturas” específicas para cada núcleo. O roteiro até funciona se considerarmos a memória afetiva mas é realmente um tanto confuso, principalmente por tentar abraçar uma narrativa muito mais abrangente do que poderia ser apenas uma lúdica modernização dos personagens.
Para mim, o grande barato foi ter visto apenas um dos primeiros trailers divulgados, um que não entregava muita coisa do que eu veria no longa. E se você quer ter a mesma experiência, sugiro que pare agora e veja o filme. A experiëncia sem spoilers é impagável e, por conta do confinamento, o filme já está disponível nas plataformas VOD, onde foi lançado, em vez dos cinemas. Pode não ser um clássico 100% fiel às suas origens mas SCOOBY! O Filme tem, sem sombra de dúvidas, uma boa dose de charme.
ATENÇÃO: A PARTIR DESTE PONTO ESTE POST CONTEM SPOILERS DE SCOOBY! O FILME
Muito além da Mystery Machine
A grande verdade sobre SCOOBY! O Filme é que não estamos falando apenas de uma aventura à la Mystery Machine. A empreitada é na verdade uma grande ode ao universo Hanna-Barbera (ou mesmo ao universo Warner) e, depois do prólogo, ficamos à espreita de cada nova citação, aparição ou easter egg. Esse é o grande barato, ao mesmo tempo que é justamente o que incomodou muita gente que acredita que seria viável fazer um longa sendo 100% fiel à fórmula do desenho dos anos 60.
Logo no início somos lembrados do verdadeiro nome do Salsicha (Norville) e apresentados ao seu quarto cheio de cultura pop (bonecos funko, diversos desenhos e posters nas paredes, incluindo Os Incríveis). Começamos a perceber então que o longa é um presente para os saudosistas e uma constante busca por modernização. Em sua primeira aparição, por exemplo, Daphne recorre à clássica fantasia de Mulher Maravilha enquanto Velma homenageia a atualíssima Juíza-Celebridade Ruth Bader Ginsburg. Assim que o grupo se junta e, uma vez resolvido o primeiro mistério, vemos o quinteto correndo de monstros bem familiares (sim, são aqueles do desenho animado original!) enquanto as crianças crescem numa sequência de cenas ao som de Scooby-Doo, Where Are you?, revelando-se então uma óbvia recriação da abertura do desenho animado.
Segue-se um cameo de Simon Cowell, cuja única função é introduzir o primeiro conflito da trama. Apesar da escolha fazer pleno sentido para quem o assistiu em American Idol ou The X-Factor – o carrasco impaciente e cruel dos talentos incompreendidos – as crianças que o longa pretende arrebatar podem não compreender a referência.
Scooby-Doo e os caçadores de Easter Eggs
E é aqui que começa o grande festival Hanna-Barbera, quase uma reedição das saudosas Ho-Ho-Limpíadas (Scooby’s All-Star Laff-A-Lympics). Salsicha e Scooby são abduzidos pela Fúria do Falcão, notória nave do Falcão Azul, onde conhecem Dee Dee Skies, Dinamite (o Bionicão) e o “próprio” Falcão Azul. A ex-Panterinha aparece como piloto da Fúria enquanto que o Bionicão deixou de ser um trapalhão. O cão veterano passou a cuidar do legado de seu verdadeiro antigo dono, agora aposentado, fazendo as vezes de babá para Brian Crown, filho mais velho do Falcão Azul original, que assumiu a alcunha do pai e cuja vocação está mais para DJ do que para super-herói.
Scooby e Salsicha descobrem então que estão sendo perseguidos pelo super vilão Dick Vigarista que enviou parte de seu exército de Rottens (uma clara referência ao time dos Rabugentos “Really Rottens”, os trapaceiros das Ho-Ho-Limpíadas) par a missão. A própria nave do vilão é uma versão steampunk da caranga-foguete que o trapaceiro usava na Corrida Maluca. Em contraponto às cores vibrantes de Venice Beach e às linhas retas, minimalistas e futuristas da Fúria do Falcão, aqui o ambiente é mais escuro e bagunçado com direito a muita engrenagem, fumaça, ferrugem e um Pombo Correio empalhado (sim, aquele!). Dois pontos para o time de produção de arte!
Claro que, se tem Dick Vigarista, tinha que ter Muttley e sua inconfundível risada. Mas o cão mais ranzinza do mundo não aparece de início. Confesso que encontro dos dois me arrancou algumas onomatopeias daquelas dignas de instagram de bichinhos. Aqui é preciso registrar mais uma decisão relativamente duvidosa do roteiro que envolve um portal criado por Alexandre (ele mesmo, O Grande), seu cão Péritas (fato verídico) e até Cérbero, o cão de três cabeças que que guarda a entrada para o mundo inferior. Para abrir tal portal, Dick Vigarista precisa de três crânios além do próprio Scooby-Doo, que seria descendente de Péritas. Sim, é forçado, mas mantenha o foco: estamos aqui pela galhofa e pelos easter eggs!
Vozes do passado homenageadas
A busca pelo terceiro crânio leva a trama para a “Montanha Messick”, uma bela homenagem ao ator Don Messick, a voz original do Scooby Doo até sua morte em 1997. A montanha esconde uma passagem para um mundo perdido, onde homens da caverna ainda convivem com dinossauros. E é ali que encontramos mais uma estrela Hanna-barbera: o Capitão Caverna. Infelizmente ele não tira nada da cabeleira no longa e nem os Flintstones foram convidados para esta festa do saudosismo. Um olho atento, no entanto, percebe duas referências feitas à icônica família da idade da pedra: quando o Capitão Caverna cita o nome de solteira de Wilma Flintstone para se referir ao crânio (o “Slaghoople”) e quando uma tartaruga é “acionada” para dar o sinal de início do combate pelo artefato, uma clara alusão à abertura de Os Flintstones.
Na sequência temos uma batalha épica em Atenas com algumas tiradas bem engraçadas e um bocado de soluções convenientemente fáceis. É até possível que a cena em que o então quarteto se abraça chorando pelo sacrificio feito por Salsicha emocione alguns. Também é possível que a cena em que Fred finalmente coloca o lencinho laranja no pescoço empolgue outros. O fato é que, a despeito do título, SCOOBY! O Filme não é apenas sobre Scooby-Doo e seus amigos. O filme é um ambiciosa indicação de que temos um HBCU (Hanna Barbera Cinematic Universe) a caminho. Culpa da Marvel, claro.
Talvez o filme fosse melhor aceito se não fosse o primeiro, mas talvez o segundo de uma saga que poderia ter se iniciado com um prólogo mais caprichado. Mas as escolhas feitas acabam se justificando quando sobem os créditos finais que, por sua vez, também estão repleto de easter eggs.
Mais curiosidades e easter eggs:
- Tanto Scooby quanto Bionicão eram dublados no Brasil pelo carismático Orlando Drummond. Drummond foi a voz de Scooby Doo por 42 anos seguidos. Três netos do ator – que completou 100 anos em 2020 – estão na versão brasileira do longa: Alexandre Drummond, como o Jovem Scooby-Doo; Felipe Drummond, como Fred; e Dudu Drummond, como Jovem Fred.
- Logo no começo do filme, vemos o pequeno Salsicha caminhando por Venice Beach. Ele passa em frente à uma loja chamada Casey’s Creations, uma homenagem a Casey Kasem, o primeiro ator a fazer a voz do Salsicha.
- Takamoto Bowl (o restaurante onde Salsicha e Scooby tentam superar as dores da separação) é uma homenagem a Iwao Takamoto, o desenhista lendário que trabalhou nos estúdios Disney antes de chegar à Hanna-Barbera em 1961 para ser o criador de Scooby Doo.
- Bem ao lado do Takamoto Bowl encontra-se a icönica Peebles Pet Shop onde vivia o Gorila Magilla que nunca conseguia ser comprado ou adotado. Como o gorilão não aparece na vitrine, é possível que ele tenha finalmente encontrado um dono.
- Quando Fred, Daphne e Velma estão na estrada a procura de Scooby e Salsicha, vemos um outdoor com a propaganda do parque aquático Bubbleland. O anúncio é protagonizado justamente por sua mais ilustre moradora: a Lula Lelé.
- Na mesma estrada vemos também um segundo outdoor. Desta vez é uma propaganda do Parque de Yellystone, o famoso lar do Zé Colméia, seu fiel escudeiro Catatau e do Guarda Smith.
- O Fliperama Funland, onde Scooby e Salsicha tentam se esconder, está repleto de referências com homenagens aleatórias aos personagens HB. São vários arcades onde podemos ver jogos como os Ho-Ho Límpicos, Hong Kong Fu, Os Incríveis, Frankstein Jr. e Força Jovem (Space Stars). Também tem um arcade de corrida da Penélope Charmosa e posters diversos espalhados pelas paredes, dentre eles Banana Splits, Hex Girls e o Viralata (Superdog).
- Na nave, os Rottens estão cantarolando a música dos soldados de O Mágico de Oz.
- Nos créditos finais temos Formiga Atômica, Tutubarão, João Grandão, Dr. Benton Quest, Frankenstein Jr. e até um esquema com as especificações da Rosie (a robô empregada dos Jetsons). Vemos também que Dick Vigarista foge da prisão e ouvimos um lobo uivando (seriam dicas para a sequência do longa?).
- A última cena do filme mostra Velma recebendo um pedido de socorro num notebook que ostenta a letra Q, de Quest Labs. Nos créditos, o Dr. Benton Quest aparece passando orientações ao quinteto. Será?…
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