Talvez um filme se torne mágico pra mim quando ele subverte minha expectativas, provando que as teorias e especulações estavam totalmente erradas. Uma coisa que sempre me fez gostar das pré-impressões Star Wars era justamente esse recurso de não mostrar quase nada antes do lançamento, aliás acho incrível deixar os trailers manipulados para nos fazer acreditar em algo irreal na trama. Guardar toda a verdade para a hora do cinema não é algo que todos conseguem fazer, principalmente obras baseadas em outras já consagradas. É complicado guardar segredo em caso de adaptações, a menos que não seja muito do que já conhecemos – ou seja, inovação subverte expectativas positiva e negativamente.
É agora que começam os spoilers de Aves de Rapina, o mais novo filme da DC Comics, lançado em 6 de fevereiro aqui no Brasil. O longa trata das cinco mulheres tendo seus caminhos conectados após assassinatos, roubos indevidos, fortunas perdidas e términos decisivos, que no final as levam à uma única missão: salvar a vida de Cassandra Cain e derrotar o mafioso Máscara Negra.
Eu assisti Aves de Rapina ontem, mas só hoje decidi escrever isso aqui. Parei para pensar sobre diversos pontos do filme e cheguei à conclusão de que não é ruim, mas também não é excelente ou impecável. Ele tem muitos pontos positivos – que eu considero como maioria -, mas peca em partes que deveriam ser como prioridade de roteiro (um exemplo é a falha na construção de personagens vendidos como sendo importantes). No mais, vale destacar que isso representa apenas a minha opinião, não do resto do PCN, portanto todas as conclusões e observações são segundo meu ponto de vista e percepção, então tá todo mundo livre pra discordar do que quiser. Dito isso, vamos!
Abrindo as gaiolas e subvertendo expectativas
Uma das coisas que eu percebi de imediato é que as personagens foram vendidas de um jeito que não é nada parecido com o que acontece no filme: a Arlequina não é líder da equipe – na verdade ela nem faz parte da equipe -, Casandra Cain não é tão vaga e desinteressante, a Caçadora mal tem tempo de tela, e pra fechar o vilão é só mais um homenzinho cringe e bastante narcisista, não passando de um qualquer genérico.
Falando especificamente das meninas, acho que o roteiro peca bastante na hora de desenvolver cada uma delas individualmente (não como equipe, mas como pessoa), tanto é que isso fica notável nos casos da Caçadora e da Cassandra. A personagem de Ella Jay, Cassandra Cain, não passa de um MacGuffin, não tendo muita relação com sua mesma personagem nas hqs da equipe (vou explicar isso mais pra frente). Além disso, aparentemente não tinham uma explicação plausível para colocarem a Caçadora como sendo tão protagonista quanto as outras, já que ela só aparece com visível importância no final – ao contrário de todas as quatro – e tem uma relação de amizade bastante “forçada” com as meninas, principalmente se levarmos em conta o tempo em que elas estiveram juntas e sua história de vida (que gerou desconfiança e cuidado com interações sociais).
A formação da equipe só ocorre no final, e na verdade apenas três delas se unem como uma espécie de anti-heroínas. Renee Montoya, Canário Negro e Caçadora juntam esforços para formar uma equipe de combate à máfia de Gotham, oficializando assim as Aves de Rapina. Cassandra Cain e Arlequina viram boas amigas, mas sem envolvimento direto com as outras – ainda que tenham laços de amizade.
Todo aquele lance de que as cinco trabalhariam juntas socando homens não dura mais do que 10~15 minutos – por mais que tenha valido a pena enquanto durou. Como expliquei antes, os caminhos delas se cruzam por acaso, e daí elas acabam tendo que confrontar um inimigo em comum, nada mais do que destino. Não que depois disso os laços tenham sido cortados – aliás elas viram amigas -, mas o ponto é que esse conceito de equipe fixa tal como Liga da Justiça, Vingadores ou Quarteto Fantástico não é o foco do filme. O foco aqui é emancipação das mulheres, não a formação equipe em si, portanto não faz muito sentido promover todo o filme como sendo sobre um grupo de mulheres fodonas, e só colocar ‘emancipação’ como um mero subtítulo.
Cassandra Cain, o MacGuffin
Eu sei que é bastante chato ficar comparando a adaptação com a obra original e berrar aos quatro ventos que “ela não é assim no livro/hq!!!”, mas acho que isso fica inevitável quando uma personagem tem sua marca registrada simplesmente jogada fora. Não tem como esperar uma adaptação do Coringa sem criar uma expectativa mínima de que ele vai ter aquela maquiagem na cara, é complicado pensar o Batman sem a postura de “estou sempre certo”, e imagina só uma adaptação onde o Homem-aranha não tenha problemas de gente normal. A questão é que quando nos apropriamos de uma personagem, temos que prezar pela mínima semelhança entre as obras, entende?
Voltando à CCXP19, Neal Adams, o famoso quadrinista, criticou o filme do Coringa pela modificação que fizeram no palhaço. Ele citou um ponto que eu concordo bastante: se for para mudar totalmente uma personagem, é melhor então que façam outra do zero. O que aconteceu em Joker (2019) foi a mudança na construção da personagem, tirando o conceito de “palhaço psicologicamente afetado”, dando lugar a um cara com muitos problemas e atitudes até que justificáveis. No filme do Coringa eles tiram toda a motivação caótica que originou o palhaço, e aquele lance de “faço porque gosto de ver o circo pegar fogo” é trocado por… compreensão e empatia? Enfim, o que eu quero dizer não é se o filme é ruim ou bom, mas sim que a equipe de desenvolvimento se usou de um nome famoso na cultura pop (o Coringa) para criar uma personagem nova que não tem nada a ver com a original, saca?
É mais ou menos isso que ocorre com Cassandra Cain na passagem quadrinhos para filme. Ela era a Batgirl, uma mestra em artes marciais e verdadeira heroína de Gotham, alguém com potencial o suficiente para não precisar de babás. Em Aves de Rapina, a garota não é ajudante do Batman ou a salvadora do Comissário Gordon, mas sim uma menina rebelde com problemas familiares e um talento para furtos. Não que ela seja uma péssima personagem no filme – inclusive gostei bastante -, mas é que não faz sentido usarem o nome de alguém totalmente diferente. Pra mim isso soou como no filme do Coringa, só que um pouco mais preocupante por se tratar de um MacGuffin.
MacGuffin é um objeto, evento ou pessoa que tem grande importância para os personagens (principalmente protagonistas). Tanta que geralmente todo o enredo se vira em torno disso, apesar do objeto (evento ou pessoa) em si não ser lá essas coisas para a narrativa que se desenrola.
Iole Melo
No fim das contas, não importa muito o que essa coisa é. O importante é a motivação que ele proporciona para os personagens levar a história para frente.
Bom, acho que é um consenso que ela é um MacGuffin, né?
E a Arlequina?
Seria injusto escrever um texto sobre Aves de Rapina sem citar como o roteiro mandou muito bem no desenvolvimento da protagonista principal, a Arlequina. Ela é divertida, articulada, uma mistura de doideira e lucidez, poderosa pra c#ralho e com certeza prova que tá bem longe de ser só uma escrava do Coringa. Ah, tenho que destacar também o esforço e o talento na atuação da Margot Robbie, a excelente atriz que interpreta a Harley, sendo notável que aquele papel só poderia ser vivido por ela.
Gostei de como montaram um arco onde a personagem prova que é alguém única, forte e independente, e você pode acreditar que isso não se deu de uma forma forçada. A construção de sua emancipação é bem natural, acontece ao decorrer do filme e sem necessariamente um ponto onde podemos dizer “ok, aqui ela passa a ser outra pessoa” – um problema que eu tenho com mudanças drásticas no comportamento de personagens. É admirável como conseguiram construir um momento girl power ao longo do enredo, sem forçação (evitando choro de alguns) e de um jeito que realmente acreditamos que ela teve sua evolução pessoal concluída com sucesso.
Outros pontos positivos
- A Caçadora: uma das coisas que eu mais gostei no filme, provavelmente a que mais me surpreendeu. Ela é bem descontraída, um ótimo alívio cômico e f#da DEMAIS! Ainda que perigosa, bem dark e com problemas de raiva, Helena Bertinelli aparenta ser uma ótima pessoa com ideais positivos – inclusive o de patrocinar uma equipe de combate à máfia.
- Cena pós-crédito: se tivesse que rankear as cinco cenas pós-crédito mais geniais da história do cinema, com certeza essa entraria pra lista. É uma das coisas que eu mais gosto no mundo: deixar nerd puto.
- Renee Montoya: sendo o arquétipo de policial das TVs dos anos 80, ela tem aquele senso moral de justiça e obrigação, tentando fazer o certo a qualquer custo. Talvez a pessoa mais nobre das cinco, Renee Montoya é a típica militar com o que eu chamo de “síndrome do Capitão Nascimento” (ir contra a corporação, afinal eles estão errados e ela certa).
- Canário: essa eu nem preciso explicar muito. Ela canta, luta, dirige, tem poderes, sabe usar armas e bate em qualquer um que entrar em seu caminho. Uma perfeita aliada e amiga, garanto.
- A morte do Máscara Negra: essa morte foi uma das mais randômicas que já vi, me pegou despreparada. Não é deus ex machina ou algo assim, ela só é bem repentina. Eu particularmente estava esperando algo bem mais “chegamos com nossos poderes para ajudar vocês”, não uma granada nas mãos de uma menina ladra aparentemente fraca.
Bom, o filme teve outros pontos positivos também, mas esses foram os que mais me agradaram. Citei fortes pontos negativos anteriormente, mas tenho certeza que a quantidade de acertos compensa bastante os poucos deslizes de roteiro em Aves de Rapina.
É bom ou não é?
Eu acompanhei o hype de Aves de Rapina desde o começo, peguei a fila do painel pra ver as meninas e poder assistir o começo filme antes de todo mundo. Dito isso, mesmo com toda essa expectativa altíssima, quero assegurar que ele não me decepcionou. Claro que existem pontos negativos como os que citei, mas nada que tenha estragado a minha experiência. Aves de Rapina valeu cada centavo e tempo investido, e esse é com certeza um filme que merece sua nota alta no Rotten e atenção de todos.
Não curto muito o universo cinematográfico da DC Comics – na verdade acho qualquer filme de herói/vilão de hq meio meh -, mas esse aqui foi uma exceção das grandes. Aves de Rapina consegue ser coerente, divertido, leve e naturalmente fluido, te segurando durante todo o enredo sem cansar. Sei que sou bastante suspeita pra falar, mas esse filme aqui é muito bom, então vale o ingresso.
Minha mais sincera nota: ⭐⭐⭐⭐ (sim, um bom filme).
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