Além das lives, uma outra febre em tempos de quarentena são as watch parties. São aqueles grupos que, mesmos isolados pelo confinamento, marcam para assistir simultaneamente um determinado conteúdo. E a fandom de Doctor Who tem sido uma das mais ativas promovendo sessões mundiais via Twitch para assistir episódios épicos da série. Se do nada, suas redes sociais se inundam de referências aleatórias sobre determinado episódio, pode contar que está rolando uma watch party.
Bom nerd que é, você até se “empolga com a empolgação” mas aí se lembra que são quase 40 temporadas (são doze apenas na “era moderna”, todas disponíveis para assinantes no Globoplay) e logo desempolga, concluindo que você nunca vai se atualizar, certo? Pois é, até entendo, mas é uma intimidação um tanto infundada e provar isso é a proposta desta postagem. Vamos explicar esse universo para você, recomendar alguns episódios e lhe deixar bem à vontade para, se a empolgação voltar, você não se sentir tão deslocado assim.
Disclaimers:
- Tentei não ser prolixa e falhei miseravelmente. Logo, esta postagem é bem maior do que estamos acostumados a ver aqui no PCN.
- Peço perdão desde já mas, apesar de funcionar em português, vou me referir ao Doutor como Doctor – em inglês mesmo – por uma questão de escolha pessoal linguisticamente infundada e injustificável, ok?
Uma aventura no tempo e no espaço
Eu reconheço que não é simples explicar esse universo e por vezes a gente acaba parecendo tolo. Mas é bom lembrar que Doctor Who começou – lá em 1963 – como uma série para crianças. Se o personagem principal podia viajar no tempo e explorar o universo, ele era o professor ideal para visitar momentos históricos e despertar, via ficção científica, o interesse dos pequenos.
Estamos falando de uma série de aventura? Sim! Mas com o passar do tempo e a evolução das tramas, Doctor Who conquistou outros públicos, abraçou o drama e, por muitas muitas vezes, namora com o suspense e mesmo com a comédia. Se pensarmos bem, nenhum universo seria bem retratado se não fosse um mix desses estilos, concordam? Mas é bom ter sempre o lúdico conceito original em mente pois ele nunca foi exatamente deixado de lado.
Com a premissa da exploração do espaço viajando pelo tempo, as possibilidades da série se limitam à imaginação e à criatividade de seus showrunners. Cada episódio de Doctor Who é, assim, uma bela tela em branco e esse é um dos motivos para a sua durabilidade.
O tal “Doutor”, quem é?
Pra começo de conversa, apesar de parecer um humano, nosso herói não é terráqueo. Ele nasceu num planeta chamado Gallifrey e pertence a uma raça conhecida universalmente como os Senhores do Tempo (os Time Lords). De especial, os gallifreyans têm dois corações além de serem famosos por compreenderem o tempo de forma não linear e, por isso, dominarem a tecnologia da viagem no tempo.
Os nomes dos Senhores do Tempo detém grande poder e, por isso, são conhecidos apenas por aqueles a quem eles confiam sua própria vida. Assim, cada Senhor do Tempo atende por um pseudônimo que é relacionado a uma promessa pessoal, uma missão ou mesmo uma grande ambição interior. Por ser extremamente inteligente e curioso, apreciar toda a ciência e querer ajudar todos os povos – “curando” seus males usando apenas o conhecimento como arma – nosso herói passou a ser conhecido apenas como Doutor.
Sem nome ou sobrenome, a pergunta mais recorrente da saga é: “Doutor quem?” (em inglês, “Doctor who?”). Na versão moderna da série (entre 2005 e 2020), o Doutor revela seu nome a um personagem somente. Nós, no entanto, continuamos sem conhecer seu verdadeiro nome.
As tais mudanças de identidade, como funcionam?
Uma outra peculiaridade dos Senhores do Tempo é que eles não morrem quando esgotam sua energia vital. Heráclito já dizia: “A única coisa permanente no universo é a mudança”, não é mesmo? Então, quando atingido fatalmente ou quando está prestes a morrer, o Doctor entra em processo de regeneração e muda completamente sua forma física. Essa transformação não compromete suas memórias e o Doctor mantém sua essência e seu vasto conhecimento deste e outros universos, com algumas particularidades e excentricidades marcando cada nova personalidade.
Tal artifício também colaborou com a durabilidade da série, permitindo que quatorze intérpretes assumissem (até agora) um dos papéis mais icônicos da cultura pop britânica. Entre 1963 e 1989 (período ao qual nos referimos como a “série clássica”), sete atores se revezaram no papel do Doctor – entre eles Tom Baker e Sylvester McCoy – e, em 1996, um oitavo Doctor (Paul McGann) foi apresentado num longa metragem, uma tentativa frustrada da Fox de retomar a série nos EUA.
Foi apenas em 2005 que a BBC britânica resolveu definitivamente ressuscitar a série e trouxe Christopher Eccleston como o Doctor (o nono). Apesar de adorado pelos fãs, Eccleston ficou apenas uma temporada no papel, passando o bastão no ano seguinte para David Tennant. Tennant arrebatou o coração dos fãs por três temporadas e é até hoje um dos mais aclamados intérpretes da série sendo, inclusive, o preferido de muitos aficcionados. O décimo primeiro Doctor foi Matt Smith, o ator mais jovem a assumir o papel, em 2010.
Em 2013, durante o “reinado” de Matt Smith, a BBC produziu um episódio especial celebrando os 50 anos de Doctor Who: The Day of the Doctor. O especial foi um presente para os fãs com a participação de David Tennant e Tom Baker além de mostrar outros ex-Doctors em imagens de arquivo.
A produção entrou para Guinness Book por bater o recorde de maior transmissão simultânea de um episódio de TV (exibido em 94 países em seis continentes) em 23 de novembro, exatamente no aniversário da série lançada em 1963. Foi também neste episódio que um “Doctor extra” foi apresentado. John Hurt foi convidado para personificar essa encarnação obscura do Doctor que, ao optar pelo belicismo e entrar literalmente em combate, teria descumprido sua promessa pessoal e, assim, desonrado o seu título de “Doutor”.
Em 2014, o vencedor do Oscar Peter Capaldi se tornou o décimo segundo Doctor e, com sua cabeleira grisalha trouxe de volta o tom professoral de alguns Doctors da era clássica. Depois de treze homens brancos, a série chegou à 11a temporada em 2018 e apresentou, finalmente, uma encarnação feminina. A primeira Doutora é a atriz Jodie Whittaker (no ar atualmente). Desde 2005, cada regeneração vem proporcionando momentos emocionantes da trama, quando um Doctor se despede fazendo um pequeno discurso em meio às insuportáveis dores da transformação.
Além dos quatorze atores citados, precisamos fazer duas “menções honrosas”. A primeira é para o ator veterano David Bradley que encarnou o ator William Hartnell e como ele se tornou o primeiro Doctor no docudrama especial An Adventure in Space and Time (também produzido para o aniversário de 50 anos, em 2013). Bradley, que já havia sido um contrabandista na 7a temporada, voltou como o primeiro Doctor no episódio de encerramento da 10a temporada. A segunda menção honrosa é para a surpreendente aparição de Jo Martin, a primeira encarnação negra do Doctor, que surgiu ainda sem contexto cronológico, na 12a temporada.
E a tal cabine azul, o que é?
Para viajar por todo o universo, desde o big bang até o fim dos tempos e de toda forma de vida, o Doctor usa um veículo extremamente peculiar: a Tardis. Acrônimo de “Time and Relative Dimensions in Space”, essa belezura de máquina do tempo é capaz de viajar também para realidades alternativas, universos paralelos e outras dimensões. Ela própria, cuja tecnologia é 100% gallifreyan, opera multidimensionalmente e, por isso, “é maior por dentro do que por fora” – uma frase que é repetida à exaustão dentro e fora da série.
É importante ressaltar que essa Tardis específica foi roubada pelo primeiro Doctor quando ele ocasionalmente “precisou deixar” Gallifrey. Acontece que a Tardis é uma estrutura viva, que tem personalidade e vontade própria e é intrinsecamente conectada à personalidade do Doctor. Por isso ela também se transforma internamente a cada regeneração do Doctor. Projetada para se camuflar, misturando-se à paisagem visitada sem chamar para si alguma atenção indesejada, a Tardis assumiu a forma de uma Cabine de Polícia durante uma visita à Londres em 1963. Foi durante essa visita que seu “circuito camaleão” parou de funcionar travando assim a aparência desta Tardis para sempre.
Existe entretanto um detalhe que devemos levar em conta em tudo o que se refere à Tardis: com ela, nada é por acaso. Muitas vezes o Doctor tenta ir a um lugar e acaba aterrisando em outro; ou ele acerta o lugar mas erra o tempo. Isso leva alguns a atribuírem o tal defeito no circuito camaleão a um comprometimento mais profundo dos funcionamentos dessa Tardis. Mas como trata-se de um veículo com vontade própria, é preciso lembrar que ela pode nem sempre querer atender as vontades do Doctor. A Tardis é tão enigmática que existe um episódio na 6a temporada escrito por ninguém mais, ninguém menos do que Neil Gaiman sobre a relação entre a máquina do tempo e o Doctor.
Seria o Doctor um lobo solitário?
Uma existência praticamente imortal, com o poder de viajar no tempo e no espaço, preservando a ordem das coisas e os principais segredos do universo deve ser um peso que nenhum ser – terráqueo ou alienígena – consegue carregar. E o Doctor, sabendo disso melhor do que ninguém, acaba sempre – voluntariamente ou não – buscando por companhia. Afinal, todo Don Quixote precisa de um Sancho Pança.
Os companions são aqueles a quem o Doctor oferece um lugar cativo ao seu lado na Tardis e com quem ele estabelece relações intensas e um tanto simbióticas. Na maioria das vezes o vemos viajando com uma humana apenas, mas isso está longe de ser uma regra obrigatória. Já tivemos Doctors acompanhados por grupos (como é atualmente), eventualmente com outros alienígenas e até mesmo com formas de inteligência artificial (como o icônico cão-robô K9 da série clássica que reapareceu brevemente na era moderna). E é através dos olhos destes privilegiados que nós – pobres mortais – iremos conhecer a praticamente inabalável fé do Doctor na humanidade e normalmente são eles que fazem as tolas perguntas que queremos fazer e que nos esclarecem as questões complexas às quais o Senhor do Tempo é constantemente submetido.
Obviamente os companions acabam, por muitas vezes, se metendo em encrencas descabidas. O Doctor diz “me espere aqui”, por exemplo, e o que ele faz? Justamente o contrário. Na verdade, se não fosse assim, não teríamos sequer a metade dos episódios. Por outra tantas vezes, são os companions que salvam a pele do Doctor e em algumas vezes, são eles os responsáveis por determinar uma emocionante ou impactante reviravolta na trama ou mesmo no curso da história universal.
Nos episódios da era clássica, a substituição dos companions acontecia sem que a isso se desse muita importância. Já nos episódios da era moderna, o tema passou a ganhar mais peso emocional, com o Doctor sentindo cada vez mais a perda desses amigos tão próximos, principalmente quando essa perda se deve, eventualmente, a algo trágico e inevitável.
Obs.: Existem alguns outros personagens recorrentes na série que não são exatamente companions. Alguns deles até aparecem na imagem acima. Mas eles são importantes demais e falar deles aqui seria muito mais do que uma introdução. Eu acabaria cometendo spoilers.
Tem o tal do EX-TER-MI-NA-TE, não tem?
Não necessariamente ser uma espécie de guardião da ordem das coisas no tempo e no espaço vai agradar a todo e qualquer ser vivo no universo. Assim, o Doctor obviamente entra em conflito direto com alguns indivíduos ou povos, cultiva alguns desafetos e encontra inimigos declarados de seu planeta natal.
– Dos embates
Os arqui-inimigos dos Senhores do Tempo são os Daleks. Trata-se de uma raça mutante de guerreiros, desenvolvidos a partir de engenharia genética e conectados ciberneticamente a uma espécie de carcaça metálica parecida com um saleiro de mesa. São justamente eles que repetem EX-TER-MI-NA-TE de forma robótica e irritantemente histérica quando atacam.
Outro inimigo recorrente do Doctor são os Cybermen. Estes robozões foram criados em um universo paralelo na tentativa de preservar os seres humanos ou outros humanóides. Os cérebros são transferidos para poderosos corpos de metal e as emoções inibidas com um chip eletrônico e, uma vez sem identidade individual, passam a receber ordens através de uma rede própria de telefonia móvel.
Vale ressaltar que Daleks e Cybermen são inimigos do Doctor e também inimigos entre si. Eles normalmente aparecem em episódios de ação ou naqueles mais focados na ficção científica.
– Dos sustos
Quando falamos de suspense, outros inimigos mais sinistros aparecem. Os Silêncios, por exemplo, fazem parte de uma ordem religiosa e têm uma aparência que remete ao famoso quadro O Grito (de Edvard Munch). Ele aparecem de repente e são lembrados apenas enquanto são vistos, sendo esquecidos assim que o olhar da vítima é desviado da sua figura. Este artifício lhes permite manipular as açoes de suas vítimas torturando-as psicologicamente por não se lembrarem dos motivos que as levaram a tomar tais ações.
Tão sinistros quanto os Silences – ou até mais – são os Weeping Angels (anjos chorões), predadores que se passam por inofensivas estátuas de pedra. Enquanto são observados eles estão “presos quanticamente” na forma de estátua de pedra. No entanto, quando não estão sendo observados por outro ser, os Anjos se movem muito rapidamente, percorrendo metros de distância em direção à vítima, literalmente num piscar de olhos. Quando alcançam e tocam suas vítimas, eles a deslocam no tempo sem deixar rastros, o que faz com que um resgate seja praticamente impossível.
Nas palavras do Doctor, “são tão antigos quanto o universo” além de serem “a mais poderosa e mais malévola forma de vida mortal, já identificada“. São os protagonistas de pelo dois dos melhores episódios de toda a série.
– Das estratégias
Se você chegou até aqui é porque já deve estar concordando que o Doctor é uma criatura incrível. Logo, nada mais natural que alguém tão incrível e poderoso quanto ele mesmo apareça para lhe fazer frente intelectualmente. Esse adversário existe e, surpresa!, também é um Senhor do Tempo: o Mestre.
Amigo de infância do Doctor, o Mestre tem seu título vinculado a sua sede de poder e à ambição de dominar o universo. Sendo um Senhor do Tempo, ele também se regenera e viaja no tempo e no espaço desde que foi renegado por Gallifrey. A dualidade de sua relação de amor e ódio com o Doctor provoca embates épicos e emblemáticos e suas aparições são sempre impactantes.
Beleza. E agora, o que eu assisto?
Bom, agora que você já entendeu de tudo um pouquinho, pode se inteirar do que foi falado aqui com alguns episódios icônicos da era moderna listados a seguir. Coloquei em destaque aqueles realmente essenciais. Depois, se você realmente curtir a vibe, basta escolher se começa a maratona do início da era moderna ou se encara a partir da 11a temporada – na estreia de Jodie Whittaker. Como dissemos lá no início, todos os episódios desde 2005 estão disponíveis para assinantes no GloboPlay. Molezinha, vai… Já foi bem mais complicado assistir Doctor Who por aqui, amigos.
- S01.E01. Rose – é bom começar pelo começo, certo?
- S01.E09. The Empty Child – o primeiro suspense da era moderna; é de arrepiar.
- S01.E10. The Doctor Dances – continuaçao de The Empty Child.
- S02.E00. The Christmas Invasion – entenda como o Doctor reage a uma regeneração.
- S02.E03. School Reunion – o episódio citado onde o Doctor reencontra Sarah Jane.
- S02.E04. The Girl in the Fireplace
- S02.E08. The Impossible Planet
- S02.E09. The Satan Pit
- S03.E02. The Shakespeare Code
- S03.E10. Blink* – um dos melhores e mais assustadores de toda a série.
- S03.E12. The Sound of Drums
- S03.E13. Last of the Time Lords – continuação de The Sound of Drums
- S04.E02. The Fires of Pompeii
- S04.E08. Silence in the Library
- S04.E09. Forest of the Dead – continuação de Silence in the Library
- Especiais The End of Time (Part I/Part II) – super emocionante!
- S05.E01. The Eleventh Hour – a estreia de Matt Smith
- S05.E10. Vincent and the Doctor* – um dos melhores e mais emocionantes de toda a série.
- S06.E01. The Impossible Astronaut
- S06.E02. Day of the Moon – continuação de The Impossible Astronaut.
- S06.E04. The Doctor’s Wife – episódio citado em algum lugar deste post.
- S06.E07. A Good Man Goes to War
- S06.E13. The Wedding of River Song – episódio citado em algum lugar deste post.
- S07.E01. Asylum of the Daleks
- S07.E05. The Angels Take Manhattan
- S07.E13. Nightmare in Silver
- S07.E14. Day of The Doctor
- S08.E01. Deep Breath – a estreia de Peter Capaldi
- S08.E11. Dark Water
- S09.E00. Last Christmas
- S09.E10. Face the Raven
- S10.E01. The Pilot
- S10.E11. World Enough and Time
- S10.E12. The Doctor Falls – continuação de World Enough and Time.
- S11.E00. Twice Upon a Time – episódio citado em algum lugar deste post.
- S11.E01. The Woman Who Fell to Earth – a estreia de Jodie Whittaker.
- S11.E05. Fugitive of the Judoon – episódio citado em algum lugar deste post.
(*) A propósito, Blink e Vincent and the Doctor são sempre as minhas primeiras recomendações para quem nunca se aventurou no universo whovian.
Comenta aí Nerd!