Quando você vive com alguém cujo viés cultural diverge totalmente do seu, muita negociação se faz necessária para assistir filmes e séries em pleno confinamento pandêmico. Achar algo que agrade aos dois parece ser algo simples mas algumas vezes beira o inatingível. E foi numa dessas negociações que apareceu The Gentlemen. Fã declarada do estilo caótico de Guy Ritchie e confiando que o marido não se toca em quem dirige, produz ou escreve a maioria das obras, eu fiz a indiferente (“é, esse aí parece que não é ruim”). Na verdade tentava disfarçar minha enorme vontade de voltar a ver o peculiar submundo londrino depois da aventura chamada Alladin. Eu preciasava matar minha carência por anti-heróis irônicos e quase carismáticos que só Ritchie, o Cara, sabe criar.
AVISO: Alguns vídeos extraídos dos filmes serão inseridos aqui e eles contém spoliers.
O Ritchieverso
Quando subiram os créditos eu me sentia redimida e aliviada. Não é que Alladin seja um filme ruim, mas ele só entrou na filmografia do diretor porque ele queria fazer algo que os filhos pudessem assistir. E se havia algo no universo Disney que caberia a Guy Ritchie, obviamente seria o gatuno Alladin, um malandro simpático que vivia e sobrevivia de pequenos roubos e golpes até encontrar a lâmpada maravilhosa e conhecer a Princesa Jasmine. A gente até compreende essa escolha considerando a temática que o diretor já havia dado a Rei Arthur: A Lenda da Espada. Em vez de Merlin, o príncipe bastardo teria sido criado em meio a ladrões e prostitutas tendo sobrevivido na marginalidade impondo-se – intelectual e fisicamente – como líder de uma guilda de foras da lei que eventualmente viria a insurgir-se contra o mandato de Vortigem.
E aqui cabe bem destacar que os protagonistas de Ritchie seguem essa curiosa tendência de serem intelectual e fisicamente desbundantes. Entre jogos de palavras ou cartas ou xadrez e diálogos quase incompreensíveis de tão acelerados, sempre cabe uma violenta disputa com peitos nus, braços musculosos, punhos rápidos e muito slow motion. Ritchie tirou a camisa até de Sherlock Holmes, revelando uma impecável forma física e retratando-o como um lutador de rua impávido que, em fração de segundos, elabora uma estratégia fulminante sobre como e onde atingir seu adversário para vencer o combate.
Ritchie sempre usou e abusou da testosterona em seus filmes e, se não abriu exceção para Sherlock, obviamente não o faria para o Rei Arthur, outro ícone da literatura britânica. Aqui reside o principal motivo para ser tão criticado: o excesso de assinaturas (quem precisa de um Tarantino inglês?). No caso de Guy Ritchie, elas são muitas : apelidos cheio de significados, sotaques reforçados, perseguições a pé, sequências e cortes rápidos, rewinds explicativos e elucidadores, planos que contém planos e mais planos além de planos que não dão certo (ou dão certo sem querer por um outro motivo aleatório) e várias instituições criminosas conectadas entre si. E os créditos! Ah, os créditos (iniciais ou finais) de Guy Ritchie são sempre uma obra prima à parte, assim como as apariçõs especiais e as trilhas sonoras.
Questão de Ordem
Ao analisar sua filmografia em uma linha do tempo é mais fácil identificar as idas e voltas a essa zona de conforto. A estética foi apresentada em 1998 com Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, deliciosamente histérico e repleto de planos “infalíveis” e coincidências absurdas que deram tão certo que passaram a dar o tom das narrativas do diretor. Ritchie nos apresentou a um humor britânico inteiramente particular, diferente do humor negro porém próximo de algo que beira o surreal. E nós adoramos!
Na sequência emplacou Snatch (2000) que talvez seja a única unanimidade de Ritchie. Os elementos que agradaram mo filme anterior estão de volta porém se mostram aprimorados tanto na profundidade da trama quanto nas técnicas de edição e fotografia. Temos viradas de mesa sensacionais e Snatch ainda possui uma das melhores cenas entre todas as comédias de erros já produzidas.
Destino Insólito é uma comédia romântica que atravessa nossa linha do tempo em 2002 mas podemos fingir que não existiu. Veio Revolver, de 2005, com Jason Statham, jogos de azar, truques mentais e vinganças pessoais, e que namora de forma intrigante com o existencialismo e a filosofia tentando centrar a narrativa na exploração das definições de “ego”. Ele até incluiu explicações nos créditos finais, por quê!? O filme precisou de edições extras para suavizar sua complexidade e ganhar o mundo e, apesar de não ser um dos meus preferidos, muita gente o acha subestimado pelo público e crítica.
De volta ao maravilhoso mundo da testosterona pura e aplicada, Ritchie lançou RocknRolla – A Grande Roubada em 2008. Este é o último título fiel à fórmula dos casos e acasos disparados acidentalmente por planos e conexões que nunca saem do jeito esperado. A diferença aqui é que agora ele conta com um elenco ainda mais estrelado. Todos os componentes da estética de Ritchie estão presentes, comprovando a tese de que depois de uma derrapada o diretor inevitavelmente volta à sua zona de conforto. Também é em RocknRolla que se percebe o flerte de Ritchie com o mundo da moda e uma abertura aos personagens femininos dentro desse universo testoterônico. Pelo menos um por vez.
Em 2009 Guy Ritchie inaugurou (como citei anteriormente) sua fase de desconstrução da literatura britânica, trazendo Sherlock Holmes ao seu caótico universo. Seu Sherlock é um misto de intelectual esnobe e um palhaço dramático e antissocial que extravasa suas frustrações intelectuais em lutas de rua. Em compensação tem um Dr Watson correto e socialmente responsável que luta bem mais que sua persona literária para dar razoabilidade ao amigo excêntrico. Entre erros e acertos Ritchie acaba agradando porque adequa seus artifícios de narrativa à idiossincrasia de um personagem forte e icônico. Já a sequência, o Jogo das Sombras (lançada em 2011) não empolga tanto exceto pelo já mencionado antagonismo entre Sherlock e Moriarty num jogo psicológico de antecipação de tirar o fôlego.
Eu vou sabotar aqui a minha própria proposta de seguir a linha do tempo e vou pular para Rei Arthur: A Lenda da Espada. Diferente de Sherlock que bem ou mal teve sua personalidade exagerada porém preservada, o bastardo de Uther Pendragon acabou virando apenas um Arthur aleatório que eventualmente se torna o rei da Inglaterra. Ritchie preferiu ser mais fiel a sua própria estética do que a narrativa milenar de um herói nacional e atemporal. Derrapou feio nas cenas que envolviam magia, cometeu mais erros que acertos e salva-se, além do elenco, uma produção estupenda e uma fotografia hipnotizante.
A Redenção
A quebra de paradigma no mundo de Guy Ritchie (será que podemos chamar de maturidade?) veio com o remake de O Agente da U.N.C.L.E. e, posteriormente, com o lançamento de The Gentlemen. Acostumados ao ritmo frenético de Jogos, Trapaças… e de Snatch, num primeiro momento podemos achar que a parceria entre Napoleon Solo e Illya Kuryakin parecia insossa mas ainda bem que fomos surpreendidos.
Num ano que teve Kingsman, A Espiã que Sabia de Menos e MI: Nação Secreta, O Agente da U.N.C.L.E. não fez nada feio com sua atmosfera retrô e seus estereótipos previsíveis. Ritchie se revela um fashionista irremediável e constrói seus super espiões com adoráveis requintes de ironia e deboche com a seriedade paranóica da guerra-fria. E isso sem abrir mão de seu personagem preferido na vida: o bom e velho punguista. Ele abdicou de muitas das pirotecnias narrativas a que estávamos acostumados, se permitiu duas personagens femininas fortíssimas e acabou criando um filme que é um precioso entretenimento. E foi com esse filme que ele subiu a barra das exigências para The Gentlemen.
Em seu último longa, Ritchie se posiciona justamente entre a estridência de Snatch e o estrategismo cauteloso de O Agente da U.N.C.L.E.. Os gangsters são menos impulsivos (na verdade chegam a lembrar um pouco o universo John Wick, cheio de cortesia) e os demais personagens – ainda que caricatos – são extremamente cativantes. Ritchie usa seus artifícios de forma mais ponderada. Se dá ao luxo de recriar toda uma cena apenas para dar o devido destaque aos Christian Louboutin Black Pumps da poderosíssima Rosalind Pearson.
The Gentlemen nos lembra apenas de leve o tempo em que o descontrole total dos acontecimentos era o porto seguro do diretor que aqui usa o acaso apenas o suficiente para nos fazer rir. E o faz seja com o jornalista antiético e hilário Fletcher ou com seu interlocutor, um metódico e centrado Raymond, várias vezes incrédulo frente aos absurdos das situações. Charlie Hunnam aliás está simplesmente fantástico no filme como Raymond. Sem clubismo.
Outra coisa a se destacar em The Gentlemen: o elenco. Que elenco! Tanto Charlie Hunnam quanto Hugh Grant voltam a filmar com Ritchie e a química é maravilhosa. Principalmente se pensarmos que o protagonista é Matthew McConaughey, que pode fazer o que quiser na indústria do cinema. Além de regastar Hugh Grant do limbo, Ritchie também se aproveita do camaleão chamado Colin Farrell e nos entrega Michelle Dockery envolta em puro refinamento.
Não dá para saber que linha o Ritchieverso vai seguir daqui para a frente. Quem sabe ele acabe recorrendo à sua fórmula mágica. Talvez ele algum dia reconheça que pesa a mão em piadas racistas ou homofóbicas e nos poupe de ficar justificando esses tropeços. Ou talvez ele resolva dirigir uma ópera antes de se aventurar a fazer um filme onde trate os feronômios com a mesma deferência, vai saber… Mas é fato que poucos sabem como ele aproveitar todo o suco de testosterona que se é possível extrair da masculinidade, indo do ridículo da “macheza” ultrapassada até um improvável romantismo avassalador. Eu sempre vou pagar para ver.
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