Em 2009, durante um evento de poesia na Casa Branca, um jovem e nervoso Lin-Manuel Miranda pegou o microfone e anunciou que iria cantar um música de seu então novo álbum-conceito sobre a vida e a obra de alguém que personificava o espírito do hip-hop: o 1o secretário do tesouro Alexander Hamilton! Obviamente que todos os presentes riram. Em 2016, também na Casa Branca, o presidente Barack Obama contou essa história ao anunciar uma apresentação especial do elenco original do musical Hamilton (agora já um estrondoso sucesso de público e crítica na Broadway) e perguntou: “quem está rindo agora, hein?”
Cantado em raps e hip-hops criados pelo próprio Lin-Manuel e baseado na biografia “Alexander Hamilton” escrita em 2004 por Ron Chernow, Hamilton – o musical – estreou na Broadway em 2015, depois de uma temporada de ajustes na Off-Broadway, com bilheterias esgotadas e arrebatando – de cara – 11 prêmios Tony e um Pulitzer Prize for Drama. Suas músicas viraram um álbum – gravado pelo elenco original – ainda em 2015 e inspirou a gravação de um outro álbum – The Hamilton Mixtape – onde artistas consagrados gravaram suas versões das canções do musical. Ganhou uma segunda montagem em Chicago além de duas turnês nacionais e uma internacional. Estaria em cartaz até hoje, com elenco renovado, não fosse a parada obrigatória do planeta por conta da pandemia de Covid-19.
Hamilton virou filme em 2020, editado com base em apresentações realizadas em junho de 2016, quando ainda contava com praticamente todo o elenco original. Seria exibido nos cinemas em 2021 mas, também por conta da pandemia, acabou sendo liberado via streaming pela Disney+ – que, a propósito, penou junto à produção do musical para obter os direitos – no início do mês de julho.
Como todo musical da Broadway, Hamilton já seria uma experiência única. Captada pelas câmeras, no entanto, essa experiência ganha novas nuances e se torna acessível praticamente em toda sua glória para todo o planeta. Mesmo que historicamente não tenhamos apegos sentimentais com o tal cara que está na nota de 10 dólares, é impossível não se impressionar com a força (e a velocidade) das canções e o poder das interpretações.
Lin-Manuel Miranda é o dono da bola, obviamente. Sua genialidade é espantosa e vai muito além do seu talento com as rimas. A assinatura de Lin-Manuel está em todo o musical e sua atuação como o imigrante protagonista que mudou a história dos EUA reflete muito da identidade do próprio artista, que é descendente de imigrantes porto-riquenhos. Depois de algumas participações na TV (como a icônica e melódica aparição na 9a temporada de HIMYM), Hamilton fez a carreira de Lin-Manuel explodir fora dos palcos: escreveu canções para Moana, A Pequena Sereia e até Star-Wars (O Despertar da Força e A Ascensão Skywalker) e ganhou um papel de destaque ao lado de Emily Blunt em O Retorno de Mary Poppins.
Além do criador, um elenco de primeiríssima linha faz nossa cabeça explodir entre uma canção e outra. Daveed Diggs (Unbreakable Kimmy Schmidt, Extraordinário, Black-ish), por exemplo, começa como Marquis de Lafayette, com um delicioso sotaque francês e uma inquestionável presença de palco, e arrebata a plateia de vez ao voltar como Thomas Jefferson. Daveed demonstra uma incrível e impressionante habilidade de dominar a velocidade das rimas (19 palavras em 3 segundos, por exemplo, em “Guns and Ships”) sem perder a métrica ou a melodia das canções. Também é Daveed – junto a Lin-Manuel – o responsável por transformar os épicos debates entre Thomas Jefferson e Alexander em sensacionais batalhas de hip-hop.
Assim também é Renée Elise Goldsberry (The Good Wife, O Mistério do Relógio na Parede, Altered Carbon) que nos tira o fôlego com sua Angelica Schuyler. “Satisfied” é um dos pontos altos do musical sendo lírica, visual e tecnicamente deslumbrante. A canção versa por mais de 5 minutos sobre os conflitos de Angelica e como ela acaba em um triângulo afetivo com sua irmã Eliza e Alexander. Toda a sequência que envolve “Satisfied” é pensada para nos levar para dentro da cabeça de Angélica, com “rewinds” e “forwards” e muitos cortes de câmera. A música – baseada numa carta escrita por Angelica para Alexander – demanda da intérprete um domínio lírico ímpar, culminando em versos que chegam a impressionantes 121 palavras em 24 segundos (5 palavras por segundo!!!).
George Washington não poderia ficar de fora e Chris Jackson (Oz, Olhos que Condenam, Moana, Bull) nos traz toda a complexidade do primeiro presidente americano com a maestria e a discrição dos grandes coadjuvantes. As canções ganham um compasso mais lento e uma métrica mais simples para retratar a notória mente metódica do primeiro presidente americano. Chris constrói um mediador inteligente durante o mandato que mostra sua preocupação em proporcionar uma transição pacífica entre administrações, ao decidir não concorrer à reeleição. Existe um momento onde ele aparece discretamente atrás de Eliza e, quando ela canta sobre o legado de Alexander e tudo o que o marido poderia ter feito sobre a abolição da escravatura, podemos vê-lo anuindo com um quê de vergonha por não ter feito mais ele mesmo sobre o assunto.
Ainda sobre o elenco, a menção honrosa vai para Jonathan Groff (Frozen, Glee, Midhunters) e suas divertidas aparições como o Rei George III. Assim como as canções de Eliza fogem propositadamente do rap para o pop, as canções do Rei George trazem um quê de Beatles para o musical (com um dadadadat dadatda dadadayada que gruda por horas em nossos ouvidos). Ele realmente é um intruso naquele universo e Jonathan leva isso às últimas consequências fazendo-o bem caricato, caminhando em linhas retas – como quem anda em cordas bambas – e lentamente – por conta o peso da coroa (literal e metaforicamente) sobre os ombros. Jonathan chega a cuspir de raiva e desprezo na parte da canção em que o Rei se dirige ameaçadoramente ao povo americano. É uma participação realmente incrível.
A despeito das licenças poéticas e históricas, Hamilton é um desbunde. Todo detalhe tem um motivo, e quanto mais assistimos, tanto mais ficamos impressionados. O cenário remete aos navios que levavam imigrantes e se transforma com pesadas paredes a medida em que a nação americana é “construída”. Também tem o palco que gira em sentido horário ou anti-horário para indicar a passagem ou a volta no tempo durante a narrativa. E finalmente, um trabalho coreográfico extremamente preciso que conta com um impressionante elenco de apoio para fazer com que cada conflito seja detalhadamente retratado e devidamente contextualizado.
Muitas músicas são memoráveis em Hamilton. Desde a abertura com a homônima “Alexander Hamilton” (cartão de visitas da peça) até o encerramento com “Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story“, passando por “Tomorrow There’ll Be More of Us” (que me lembrou demais os estudantes de Les Miserables) e “Say No to This“, as canções são daquelas que vamos cantar por décadas. Uma delas, no entanto, é particularmente especial: “My shot“. Trata-se de uma canção intensa que revela muito do cerne da obra e das ambiçoes do jovem Alexander. Ela é cantada logo no começo, na mesa no pub, em meio a sucessivos shots de bebidas. Seu significante refrão é repetido em pontos chaves do musical e, no fim, percebemos que ela profetiza a morte de Alexander, com um tiro (shot), num duelo.
Se fosse composto de “músicas normais”, Hamilton duraria cerca de 5 horas ininterruptas. Com a “genialidade rapper” de Lin-Manuel, são 2h e 40min que transformaram a revolução americana em um fenômeno cultural e alçaram “o cara da nota de 10 dólares” ao patamar de ícone da cultura pop. Particularmente foram os 160 minutos mais felizes dos meus últimos dias. Num momento em que somos obrigados a refletir sobre isolamento social e o futuro do teatro (e do cinema, obviamente), Hamilton é dessas obras que nos faz torcer para que tudo isso passe e possamos voltar a frequentar estes espaços sem medo.
Curiosidades:
- Hamilton está recheada de recheadas de citações, paráfrases e referências a muitas músicas de hip-hop, rap e R&B.
- A parte de “One Last Time” em que George Washington canta junto com Alexander e que tem trechos do discurso do ex-presidente foi inspirado na canção “Yes We Can“, do rapper Will.i.am, onde celebridades diversas cantam o famoso discurso homônimo de Barack Obama.
- Jonathan Groff era o único membro do elenco original que já havia deixado o musical em junho de 2016, quando as filmagens foram realizadas. Ele voltou aos palcos apenas para titular como Rei George III no filme. Rory O’Malley (o então Rei George nos palcos) e Brian d’Arcy James (que viveu o monarca durante o período off-Broadway) são mencionados nos agradecimentos especiais dos créditos.
- No palco, ao lado do Princípe Harry (descendente direto de Geroge III, seis gerações depois), Lin-Manuel revelou que teve a ideia de incluir o monarca no musical durante a lua-de-mel. Ao ouvir a ideia, Hugh Laurie (com quem Lin-Manuel atuava em House) anuiu brincando “awwww, you’ll be back” enquanto balançava o indicador, inspirando a música que retrata a “carta de despedida” do rei para os americanos recém independentes.
- Também sobre o Rei George III, Lin-Manuel revelou que se inspirou na série John Adams (HBO, 2008) e no encontro entre Adams (Paul Giamatti) e o rei (Tom Hollander) que acontece na série para escrever “I Know Him“: “John Adams!? / I know him / That can’t be / That’s that little guy who spoke to me / All those years ago / What was it, eighty-five?“. Lin-Manuel costuma dizer que espera que todos tenham assistido a série e pesquem a referência.
- Outra revelação feita por Li-Manuel é que Harry Potter também está entre as referências e inspirações para alguns momentos do musical. Na passagem de tempo em que Alexander se dedica a melhorar sua educação no menor tempo possível, ele tem em mente o momento em que Harry se descobre um bruxo, mudando a sua vida. Ele também diz que o primeiro encontro de Alexander com Aaron Burr no musical tem o primeiro encontro entre Harry e Draco Malfoy como inspiração.
- A popularidade do musical foi tamanha que o Secretaria do Tesouro dos EUA desistiu de substituir Alexander Hamilton na nota de U$10.
Comenta aí Nerd!