Pouco antes do lançamento do primeiro volume de Harry Potter, nos divertíamos com as aventuras de Sabrina, Aprendiz de Feiticeira. A sitcom tinha fãs em todo o mundo, ficou no ar entre setembro de 1996 e abril de 2003 (163 episódios) e ganhou dois longa metragens. Ao mesmo tempo, a série de quadrinhos Sabrina the Teenage Witch da Archie Comics – originalmente de 1971 – ganhou notoriedade, voltou entre 1997 e 2009 e, por sua vez, gerou uma nova série de comic books: Chilling Adventures of Sabrina. Chegamos, por fim, a matéria prima que inspirou Roberto Aguirre-Sacasa a criar O Mundo Sombrio de Sabrina para a Netflix.
Além das tias Zelda e Hilda, do namorado Harvey e do familiar Salém pouco sobrou da leve e notória série adolescente dos anos 90. Ao chegar à terceira temporada, O Mundo Sombrio de Sabrina mostrou que seu novo conceito foi um acerto ao tornar a saga da bruxinha, definitivamente, mais sombria. Em síntese, ganhou profundidade com um roteiro mais que atual, personagens melhores e mais complexos e uma deliciosa atmosfera gótica.
Pelo amor de Beuzebu!
Sabrina Spellman é uma bruxa mestiça e, assim como Harry Potter, também é órfã. Da mesma forma, neste universo, a bruxaria é passada pelo sangue e Sabrina herdou os dons de seu pai. De diferente, o coven de Greendale faz parte da Igreja da Noite (Church of Night) sendo desta devoção portanto, que advém os seus poderes. Nesse sentido, o mundo de Sabrina também é diferente da atmosfera pagã de As Jovens Bruxas e Da Magia à Sedução.
Apesar do satanismo obviamente relacionado à Igreja da Noite, O Mundo Sombrio de Sabrina não é uma série de terror como a obra se classifica. Na verdade não se vê nem mesmo tentativas efetivas de efeitos especiais ou CGI para se crer que algum dia a série seria de terror. Em suma, trata-se de uma elaborada obra de fantasia com pitadas de humor negro e belas tentativas gráficas de aproximar-se do splatter. Batismo de sangue, canibalismo, possessões e até sacrifícios humanos são retratados com a “normalidade” que reinaria em tal realidade. Na verdade tais assuntos controversos são tratados com boas doses de humor principalmente quando se referem ao cristianismo, segundo eles, “a falsa igreja“.
“Casos reais de possessão demoníaca são
extremamente raros, apesar do que o falso deus
e sua ostensiva máquina de propaganda
querem fazer que você acredite.”
(Tia Zelda)
Tem muita magia e muita sedução
Sabrina é interpretada pela simpática Kiernan Shipka (Mad Men) que compôs uma adolescente popular, moderna, inteligente e segura. A jovem foi criada pelas tias Zelda e Hilda, que estão a cargo das maravilhosas Miranda Otto (O Senhor dos Anéis) e Lucy Davis (Mulher Maravilha, The Office UK), respectivamente. Tia Zelda é centrada, disciplinada e um tanto controladora e com Miranda ganhou ainda elegância e imponência. Por sua vez, tia Hilda é maternal, conciliadora e divertidamente atrapalhada. A cereja do bolo do núcleo familiar é o primo Ambrose (Chance Perdomo), um bruxo carismático, dedicado à família e aos estudos e pesquisas das artes das trevas. Uma enciclopédia ambulante do mundo sobrenatural.
O núcleo humano de Sabrina está no colégio Baxter High e conta com o namorado Harvey Kinkle (Ross Lynch) e as melhores amigas Roz Walker (Jaz Sinclair) e Susie/Teo Putnam (Lachlan Watson). Ao completar dezesseis anos, Sabrina precisa escolher entre ser bruxa ou humana sem, no entanto, ter qualquer conexão com o mundo bruxo fora de sua própria família. Dessa forma, além da própria humaninade, o vínculo que une Sabrina aos três amigos é o principal fator que faz com que a bruxinha relute tanto em abandonar seu lado humano.
A boa escolha do elenco possibilita que a química seja evidente dentro de cada núcleo, o que faz com que Kiernam Shipka desfile majestosa e confortável entre todos eles. Obviamente a experiência dos atores mais velhos faz com que a tarefa da jovem seja bem mais fácil, mas não diminui em nada o talento da atriz.
O elenco ainda tem mais três nomes de destaque. Primeiramente, Michelle Gomez (Doctor Who) interpreta Lilith – a primeira mulher de adão, um demônio tão antigo quanto o mundo, aquele que teria se disfarçado de serpente para enganar Eva. Lilith usa praticamente todo o seu conhecimento milenar de forma ardilosa e inteligente e Michelle Gomez é perfeita para o papel. Destaque também para Richard Coyle (Coupling) no papel do Padre Faustus Blackwood. O líder do coven e da Igreja da Noite é ambicioso, imprevisível e cheio de segredos. Coyle dá um ar levemente aparvalhado ao pesonagem que disfarça toda a sua ausência de caráter. Finalmente temos o Senhor das Trevas, Lucifer Mornigstar, interpretado por Luke Cook que usa e abusa de sua sedutora figura humana desfilando nu por mais de uma ocasião ao longo da série.
Bruxaria contemporânea
O Sombrio Mundo de Sabrina não se atém ao dilema da protagonista que tem que escolher entre dois mundos. Sabrina tem plena noção do seu livre arbítrio e se preocupa com causas atuais. Ela leva a sério o feminismo e o empoderamento feminino tanto na Baxter High quanto no mundo bruxo que, acreditem, consegue ser ainda mais machista e misógino. O roteiro ainda levanta ainda questões como o bullying e foca bastante nos dramas que permeiam o amadurecimento dos adolescentes.
A sexualidade e a identidade de gênero também aparecem sem alarde na série, aliás como deveria ser na vida real. Ambrose, por exemplo, é pansexual e Susie enfrenta seu próprio conflito de identidade não binária e conta com os amigos para superar as dificuldades da transição e o bullying no colégio.
O roteiro também nos leva a refletir sobre outros assuntos que tem na religiosidade o tema central. Como já citamos, Sabrina não abre mão do livre arbítrio independente de sua identidade, humana ou bruxa. Também são questionados a devoção exagerada e o fanatismo religioso. E isso se dá com certa frequência, seja nas referências debochadas ao cristianismo ou mesmo quando Sabrina questiona os costumes e tradições da Igreja da Noite, como sacrifícios e canibalismo.
Atmosfera dark-vintage, ou não…
Toda a produção é muito caprichada. Nenhuma data é mencionada na série o que permite que ela seja ao mesmo tempo moderna e retrô. A estética é um tanto vintage, principalmente nos elementos do mundo bruxo, dos cenários aos figurinos. Na verdade, até nos elementos mundanos da cidade de Greendale podemos enxergar referências bem anos 60. Em contrapartida, os alunos da Baxter High não podem viver sem seus celulares, o que traz a série de volta à modernidade.
A fotografia conta com elementos bastante obscuros. Muitas vezes lança-se mão do artifício “olho de peixe”, sem comprometer no entanto o resultado final. A caracterização é super chic com cada personalidade bem definida e muito cuidado ao escolher o estilo pessoal de cada personagem. Os bruxos e bruxas mais jovens, Sabrina inclusive, ganharam um ar gótico bem refinado. Tudo bastante harmonioso e em conformidade com os quadrinhos que inspiraram a série, como se vê nos créditos de abertura.
Terror Cult
O Mundo Sombrio de Sabrina é uma divertida ode ao suspense, ao terror e ao trash. Além de óbvias referencias à Riverdale, também criada por Aguirre-Sacasa, é possível encontrar referências históricas e homenagens a outros hits do cinema e da TV*.
- Dr. Sapperstein, citado no episódio 1, é o nome do médico satânico em O Bebê de Rosemary (1968).
- Os nomes “Hawthorne” e “Putnam” vieram de As Bruxas de Salém (The Crucible), de Arthur Miller. Embora personagens da obra de Miller, as famílias Putnam e Hawthorne eram nomes de famílias puritanas reais em Salém, Massachusetts. John Hathorne era o principal juíz durante os julgamentos de bruxas enquanto vários promotores (acusadores) eram da família Putnam.
- Tia Zelda aparentemente é fluente um vários idiomas, incluindo Francês, Italiano, Russo, Japonês, Espanhol e Alemão como vemos nos jornais que ela lê quando aparece na mesa da cozinha em vários episódios.
- A cena de abertura no Cinema Paramount foi filmada no mesmo cinema da minissérie de IT, de Stephen Kings nos anos 90.
- O nome do Padre Faustus Blackwood foi inspirado no folclore alemão. Dr. Faust, que teria vendido sua alma ao Diabo em troca de conhecimento irrestrito e infinito, viveu na região de Schwarzwald, cuja tradução literal é Floresta Negra (Blackwood).
- A cena em que Harvey adormece com fones de ouvido é uma referência ao personagem de Johnny Depp em A Hora do Pesadelo.
Dê uma chance ao seu lado adolescente, se jogue na maratona de O Mundo Sombrio de Sabrina e nos agradeça depois, ok?
(*) fonte IMDB.com
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